Especialista aponta que a pessoa com transtorno alimentar apresenta disfunção no ato de se alimentar, uma relação adoecida com a alimentação e o corpo
Em matéria publicada na Agência Câmara de Notícias, o coordenador do programa de transtornos alimentares do Hospital da Universidade de São Paulo (USP), Táki Cordás, revelou que no Brasil há cerca de 15 milhões de brasileiros com algum transtorno alimentar.
A endocrinologista Priscilla Gil informa que, pelo DSM V- Manual de Diagnóstico de Doenças Mentais, os transtornos alimentares são um distúrbio persistente na forma e no comportamento alimentar — não é só o quanto se come, é como se come e como se vivencia a alimentação. De acordo com a médica, ocorrem prejuízos na absorção e na ingestão de alimentos, causando um dano persistente e contínuo à saúde social e biológica.
Como lembra a especialista, a sociedade enxerga um pouco a beleza em bumbuns e seios maiores, mas sempre com a barriga bastante chapada, e hoje, anda voltando uma fase de magreza extrema nas redes sociais. “A pessoa está o tempo todo exposta a uma perfeição de corpo. Utilizam-se filtros, formas falsas para contornar esses corpos, rostos, que não são reais. A busca fica mais intensa porque há uma contínua exposição daquela imagem”, destaca.
Terrorismo alimentar na rede social
Priscilla esclarece que isso tem acontecido porque existem páginas na internet apontando que não se pode comer nada que tenha trigo, glúten, lactose, açúcar. A endocrinologista argumenta que em vez de orientar as pessoas a fazer as pazes com os alimentos, a rede social busca fomentar essa insatisfação. Ela reitera que as questões de terrorismo alimentar, em que são classificados alimentos proibidos e outros liberados, a pessoa vive dicotomicamente (dentro ou fora de uma dieta) e tem mais riscos de desenvolver um transtorno alimentar grave.
Segundo a médica, essa forma de estar mergulhado em um processo de dieta extremamente restritiva e de repente, ao rompê-la, pode ser muitas vezes o gatilho para uma compulsão alimentar. Não basta somente isso, mas a base genética,
biológica e neurobiológica, ambiente favorável para ter a compulsão alimentar, excessos alimentares, auto-oferta, estresse emocional e a forma de regular essas emoções através da alimentação. “Isso quer dizer que a pessoa está o tempo todo condenando os alimentos, vivendo uma vida restritiva de dieta e durante o momento de liberdade, vai ter um processo de libertinagem, podendo ativar um gatilho de compulsão alimentar”, observa.
Gatilhos que podem desencadear o transtorno da ansiedade
Conforme a endocrinologista, é como se fosse um ciclo de retroalimentação em que a necessidade do corpo ideal provoca a ansiedade, gerando mais procura pela rede social em busca do corpo ideal. “Eu oriento muito os meus pacientes a saírem desse ciclo e trabalhar a neutralidade corporal. O que é isso? Ninguém ama 100% o seu corpo, e a gente evita trabalhar com um corpo positivo. O body positive vinha recomendando as pessoas a amarem o seu corpo a todo custo e não é bem assim. Não vamos glorificar a obesidade, pois é uma doença multifatorial que precisa ser tratada. O sobrepeso, muitas vezes, já tem doença associada. Precisamos trabalhar a ideia da neutralidade corporal, onde esse corpo é o que eu tenho, é o que me dá prazer, é o que me faz, é o que me leva para os lugares, é o que me dá a possibilidade de relação com o outro e consigo mesmo, é o que me dá possibilidade de gerar um filho, é o que me relaciono externamente com o mundo e busco sentir esse corpo em toda a sua plenitude”, esclarece.
Orientação aos pacientes
Priscilla explica que além da neutralidade corporal, é importante buscar fazer as pazes e o resgate com o prazer de se alimentar, não apenas o quanto ou o que está comendo de macronutrientes (carboidratos, proteínas), mas observar as sensações.
A especialista comenta que a alimentação faz parte de uma comensalidade, pois as pessoas se relacionam com o mundo através dela, seja por meio de uma história ou lembrança olfativa. Ela exemplifica com o cheiro do bolinho de chuva. “Você se lembra da sua avó e ativa memórias. Naquele momento, perceber e degustar ao máximo o prazer na forma de atenção plena do alimento. Essas percepções precisam ser reaprendidas na forma de reconexão corporal. Muitas vezes, no transtorno alimentar, isso é perdido, e precisamos trabalhar o resgate disso. A neutralidade corporal é uma chave; a segunda é a atenção plena (o mindfulness eating); a terceira, estamos falando de aceitação corporal, de reconstrução das pazes com a alimentação, tanto nessa parte corporal quanto social”, reforça.
A médica conta que recomenda ao paciente que ele se desligue da rede social que o atormenta. No entanto, ela salienta que não é preciso sair do WhatsApp ou Instagram. “Você precisa, sim, em alguns momentos, deixar de seguir perfis que o transtorna de alguma forma, deixando-o disfuncional na relação com o corpo e na alimentação. Siga perfis de pessoas que cultivam a diferença de corpos e valorizam as curvas de todos os tipos, de todos os tamanhos, diversidades e raças”, orienta.
Outro ponto citado pela endocrinologista é procurar um profissional de saúde que esteja capacitado em trabalhar com imagem corporal, distorção de imagem corporal, questões de restrições excessivas e patológicas, restrições alimentares patológicas, com compulsões alimentares, transtornos de compulsão alimentar ou outros transtornos alimentares, como a bulimia nervosa. “Busque o profissional com RQE (registro de título de especialidade), com equipe especializada. Não siga profissionais não certificados, não capacitados e que não tenham formação específica”, finaliza.